*A educadora Adriana Friedmann começou seu trabalho junto à educação infantil como professora na década de 1980. “Já naquela época, não me conformava com o fato de crianças pequenas não brincarem”, conta.
Quando começou a trabalhar no ensino superior com formação de professores, a questão do brincar mobilizou-a a realizar sua primeira pesquisa pelo resgate de brincadeiras tradicionais e mostrar a importância no desenvolvimento das crianças, que resultou em sua dissertação de mestrado e em seus primeiros livros.
Nesta entrevista, ela analisa a infância contemporânea e o desafio que é educar as crianças no mundo atual.
O que caracteriza a criança na sociedade contemporânea?
Uma das importantes contribuições da Antropologia da Infância é chamar a atenção para a diversidade de grupos infantis e de infâncias. Precisamos falar de “crianças”. Do ponto de vista global, todas as crianças estão hoje expostas à mídia, ao mercado e às redes sociais. Elas têm vivido um bombardeio de informações e de pressões que não estão de acordo com os ritmos naturais de desenvolvimento. Além de inúmeros excessos: de estímulos antes do tempo, de brinquedos e incentivo ao consumo, de atividades, de cuidados, de alimentos, etc.
Os pais geralmente estão ausentes do cotidiano das crianças, e muitos programas educacionais não têm olhado para necessidades, interesses e potenciais dos diversos grupos e culturas infantis, nem para sua individualidade. As crianças estão, ao mesmo tempo, muito expostas e muito solitárias; espelham seu sofrimento através de sintomas como hiperatividade, depressão, obesidade, apatia, problemas de sono, insatisfação, extrema dependência dos adultos e até mesmo doenças mais graves, como alergias, distúrbios digestivos e respiratórios, câncer, etc.
Como se pode analisar essa realidade?
Essas manifestações, além de consequências do ambiente a que as crianças estão expostas, têm a ver com um descompasso entre necessidades internas e estímulos externos. As crianças, de modo geral, não vivem em seu tempo interno: a pressão que os adultos exercem sobre elas quanto a relação “obrigações versus tempo livre” — o tempo de ser criança — tem tirado oportunidades de que vivam uma infância mais saudável.
O mundo tecnológico e midiático, somado à ansiedade pelo sucesso, pelos bens de consumo e pela superestimulação, está causando efeitos preocupantes ao processo de desenvolvimento das crianças: na escola e no cotidiano das famílias ou das comunidades, pulam-se etapas essenciais para o saudável desenvolvimento físico e psíquico das crianças, independentemente da cultura ou do contexto.
Como é o cotidiano das crianças brasileiras, nas diferentes classes sociais, em relação ao brincar?
Crianças das grandes cidades têm tido pouco tempo para brincar: embora tenham muitos brinquedos, estes são rapidamente “descartados”’, pois elas têm uma agenda superlotada e pouco tempo livre. Mesmo no recreio das escolas, com tempos cada vez mais restritos, as crianças têm tido poucas oportunidades de brincar. Crianças que moram em periferias ficam muitas horas sozinhas, em frente à TV, e muito tempo dentro de casa.
O acesso a espaços públicos tem sido problemático devido à falta de segurança. Muitas crianças têm usufruído de programas voltados para o incentivo ao brincar, ao lazer, às manifestações artísticas e culturais, o que vem abrindo uma importante possibilidade de acesso ao brincar.
Crianças de comunidades rurais têm amplo contato com a natureza. Seu brincar é mais solto, mais espontâneo, e elas sofrem menos pressões no seu cotidiano. Elas têm muito mais tempo livre para brincar, ainda que, com frequência, tenham de contribuir com o trabalho familiar ou doméstico. Crianças de comunidades ribeirinhas, quilombolas ou indígenas têm repertórios lúdicos que vêm sendo (re)conhecidos por alguns pesquisadores e marcam singularidades de brinquedos ou brincadeiras, os quais falam dos rituais, dos costumes e da cultura local.
Que papel a escola deve desempenhar para tornar a infância mais feliz?
O papel da escola não pode restringir-se unicamente à transmissão de conhecimentos e à socialização. A escola precisa conhecer quem são suas crianças, seus interesses, suas realidades e necessidades. Não acredito que seja possível “garantir” uma infância mais feliz às crianças, mas talvez possibilitar infâncias vividas de forma mais significativa.
Criar espaços e oportunidades para que as crianças possam brincar de maneira autônoma, escolhendo do que, com que e com quem querem brincar; oferecer tempos e espaços para que possam expressar sua fantasia, imaginação e criatividade, além de suas diversas linguagens expressivas (arte, movimento, música, etc.), propiciam pistas para que os educadores comecem a entender o universo infantil.
Quais são os principais desafios para educar as crianças na sociedade contemporânea?
Para começar, precisamos aprender a “ouvir” o que as crianças dizem de diversas formas. As gerações anteriores receberam uma educação pautada pela informação, por valores e normas sociais bastante claros: ser era mais importante do que ter — e as crianças tinham pouco ou nenhum espaço de opinião ou expressão.
Hoje, a informação está acessível e ao alcance de qualquer um fora da escola; vive-se uma profunda crise de valores; a febre do consumo atropelou nossas vidas, e as crianças começam a se manifestar de maneiras variadas, mesmo que não queiramos “ouvi-las”.
Quais são os caminhos da educação infantil hoje? Como a escola de educação infantil pode contribuir com a formação dessas crianças?
Na educação infantil, foram feitos muitos avanços em relação ao conhecimento das especificidades e necessidades das crianças dessa faixa etária, recursos têm sido mobilizados para a construção de equipamentos, aprimoramento de espaços, compra de brinquedos e mobiliário. Também ocorreram diversos avanços nas propostas que priorizam o brincar, a arte e o movimento.
As neurociências vieram corroborar a importância de atividades e estímulos nessa etapa da vida do ser humano, o que a psicologia do desenvolvimento e outras ciências humanas já indicavam. Em nosso país, economistas e gestores públicos vêm priorizando essa etapa quanto a investimentos, documentos e direitos, mostrando a grande dívida social que precisa ser sanada com as crianças brasileiras. Vejo todos esses como importantes avanços para a educação infantil.
Por outro lado, ainda é complexa a concretização no cotidiano dos centros de educação infantil, de tempos e espaços que garantam o brincar, a autonomia, o respeito a necessidades e interesses individuais: muitas crianças ainda continuam carecendo dessas oportunidades.
Fonte: Psicopedagoga Maria Paula Carvalhaes Giannini. Site facebook.com
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